por Maralto Edições
Desaforismos (Maralto Edições), de Raquel Matsushita, já nasce grande. O livro ganhou recentemente o prêmio Image of the Book 2020/2021 – concurso realizado pela Agência Russa de Imprensa e Comunicação de Massa e pela Associação de Artistas Gráficos de Moscou – e também o prêmio Cátedra/Unesco de Leitura, promovido pela PUC-RJ. A tiragem inicial é de 40 mil exemplares, pois foi adotado por escolas. Um bom começo para um livro que desafia o leitor logo na capa.

É comum, diante de um livro para crianças, a busca por classificações: poesia, narrativas ilustradas, recontos, lendas… Nem sempre é possível (e nem mesmo necessária) uma conclusão certeira e imediata sobre o gênero textual e livresco e, muitas vezes, os entendimentos vão sendo alterados ao longo das leituras: o que lemos como poesia, em um primeiro momento, se revela um aforismo, sem deixar de ser também uma narrativa, por exemplo. Desaforismos, de Raquel Matsushita, é um livro múltiplo cuja leitura pode seguir por muitos caminhos.

Já no título, a autora anuncia a brincadeira com os aforismos – um pensamento breve, um ditado, uma máxima –, com sinais invertidos, sugerindo sua negação. Este pode ser um caminho de leitura, sem dúvida: jogar com a desconstrução de pequenas frases-pensamento, com base em palavras e imagens. Mas é possível também seguir por outras vias, com ênfase nas associações mais comuns mobilizadas pelo centro do título que nos leva à rebeldia e a certo atrevimento. E isso nos aproxima, sem dúvidas, da poesia.

O curioso título logo se revela exigência para os leitores, que serão, inevitavelmente, convocados a se atrever na leitura, lendo, ouvindo e jogando com as muitas possibilidades ali guardadas. A cada virada de página, algo pisca para o leitor, chamando-o para ler, ver e ouvir de novo. Poemas, brincadeiras poéticas ou aforismos desconstruídos e reinventados, desaforo é não aceitar tantos convites.

Lirismo geométrico, por Rui de Oliveira
Não existe um objeto sem sujeito. Assim como não existe uma forma unicamente como forma, algo sem alma, que represente apenas a si próprio e para si próprio, sem aderência à história, aos sentimentos humanos ou mesmo à sociedade — em resumo, uma forma, natural ou geométrica, desprovida de qualquer simbolização. Isto não se realiza em termos humanos.
O homem, quando não entende a realidade diante de si, a simboliza. O que pretendo dizer é que as formas geométricas — com as intervenções figurativas que a designer e ilustradora Raquel Matsushita utiliza em seus livros — estão muito longe de serem minimalistas no sentido original dos objetivos da minimal art dos anos 1960, um movimento artístico ocorrido nos Estados Unidos em radical oposição ao expressionismo abstrato do pós-guerra, com seus emocionados excessos subjetivos.
Em todos os livros realizados pela artista, vemos uma geometria sensitiva, narrativa e lírica. Fato que a identifica, por exemplo, com as pinturas abstratas do uruguaio Torres García, caso ele pretendesse contar e descrever histórias.
Essa junção harmônica do informal com o formal, ou seja, da figura com a abstração, é um dos aspectos mais significativos de seus livros. A tipografia e as letras ganham som e humanidade e, principalmente, se tornam figurativas. Essa é uma das características básicas do trabalho da artista.

Outro aspecto que gostaria de destacar: o bom humor de seus livros. Nós contamos histórias por meio de antíteses e contrastes, o quente e o frio, a princesa dadivosa e a bruxa má, o plano liso e a textura. Nessa direção, é relevante observar no livro que a cor é usada como elemento básico da narração. Ao falar do amor em sua última ilustração, a artista esfria o fundo com o emprego de azuláceos. Em contraponto, as cores de cádmio, associadas ao amor, resplandecem, mesmo que pequenas. Portanto, concluímos que narrar é estabelecer uma dialética de opostos visuais.
Raquel sabe usar muito bem isso. Seus livros são um estuário, um espaço narrativo onde se encontram a ordem e a rebeldia.
Raquel Matsushita é, ao mesmo tempo, Apolo e Dionísio.
Rui de Oliveira é ilustrador, designer e escritor
Acróstico surpresa, por Guto Lacaz
O texto de quarta capa do livro é um inesperado acróstico de Guto Lacaz, que brinca com as letras a partir do nome da autora. O jogo com as letras se dá de forma concreta, com poesia, humor e um convite à liberdade.
Guto Lacaz é artista gráfico e artista plástico

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