Tive a grande felicidade de ter os olhos do Jorge bem perto enquanto escrevia o livro Mínimo múltiplo comum. Sempre aprendi muito com ele e não digo apenas de literatura, mas de vida. Porque antes de ser um excelente professor, era uma pessoa excepcional. Todas as facetas dele, admiráveis, continha o que há de mais valioso: um pedacinho da vida, um pedacinho da gente. Tinha um jeito de ver – e viver – a vida que continha a gente. Um amigo, um leitor, um (des)conhecido. Imagino ser esse o motivo por ser tão amado.
Faço aqui minha singela homenagem à esse grande amigo, grande escritor, eternizado pelos seus lindos livros e certamente nos corações das borboletas que tiveram a alegria de passar por sua vida.
Aqui, dois contos que estão no livro Mínimo múltiplo comum escritos em homenagem ao nosso Jorge. E, em seguida, o posfácio escrito por ele. Pra mim, um texto-presente que levo pra sempre comigo. Por insegurança, eu queria que o texto fosse o prefácio do livro, mas o Jorge me convenceu em colocar depois dos contos para deixar o leitor livre da “contaminação” de um olhar. Por esse motivo, também nessa homenagem, respeito essa ordem.
Comunhão (para Jorge)
Subiu de dois em dois. Para chegar mais rápido, ela ia comendo os degraus. Havia um mendigo, que fumava deitado na escadaria. Tinha um jeito calmo, de quem assiste ao redor. Eles se olharam. No breve instante dessa intersecção, ele percebeu tudo, ela pensou. E teve vontade de dizer: ele não pode ir embora. Mas não disse.
Chegou à portaria do prédio e confirmou a notícia. Foi um AVC.
No caminho de volta, e sem saber por que, andava acelerada como na ida, quando tinha pressa. A rua, as pessoas, tudo recoberto por uma cortina aguada que se formou nos olhos. Desceu a escadaria, o mendigo continuava lá. À espera. Eles se olharam de novo. Foi quando as lágrimas caíram, transbordaram. Ele não pode ir embora. Dessa vez, ela disse.
O mendigo sorriu somente com os olhos. Ela lambeu as lágrimas. Sentiu o salgado, a vida.
————
O recado
Se as ondas são palavras, o mar estava calado. Ela caminhou até os rochedos, escolhendo com calma onde pisar, sem machucar. Prendeu o abdômen com força para ganhar equilíbrio. Não podia cair.
À beira dos rochedos, ela e o mar. Aquele mar surdo e mudo. Ainda assim, ela compreendeu. Compreendeu o silêncio das águas.
Horas antes, leu uma passagem de Ciranda de pedra, de Lygia. Daniel divagava sobre a morte, um ferro de passar desligado da tomada. Vai esfriando, esfriando, até ser apenas um corpo inerte. Só que com os homens é diferente. Há o sopro. Eterno, sobrevive dentro dos corpos dos que amaram aquele que se foi. Era bonito aquilo. A morte nas palavras dela. Quis abraçar e xingar e beijar Lygia. E ele também.
Teve vontade de chorar. O mesmo choro de criança, quando desenterrou, depois de uma semana, o passarinho de estimação para ver do que a morte era capaz. E viu. Viu lá no horizonte indefinido. O canto do pássaro se formando junto com uma onda, que ganhou força e bateu contra o rochedo. Voou alto sobre as pedras. As gotas salgadas no rosto dela, sem saber se dos olhos ou do mar.
Nesse instante, bem nesse agora, ela inspirou um sopro. Uma paz enorme tomou conta. Quase se sentiu feliz.
————
Posfácio
SER SIMPLES FAZ SENTIDO
Crônicas ou contos? Nem gênero nem gênese. Melhor chamar de instantes de ficção ou simples questão de acordo literário. Casamento de palavra e emoção poética, feliz encontro de realidade e imaginário, o real em trânsito de comunhão com a fantasia. Ficção centrada em histórias comuns, anônimas e tão familiares, literatura viva e vivida.
Ser simples faz muito sentido.
Raquel Matsushita sente e escreve, casa a linguagem com a vida, extrai da simplicidade de ser e escrever coisas alegres e coisas doídas com forte dimensão humana.
Essência emotiva e emoção na essência.
É assim que acontece a criação literária da Raquel que joga contra e a favor da condição humana, sempre plena de tensão significativa. Poesia prosaica e prosa com poesia, literatura por dentro da realidade, expressão existencial do que acontece de repente. Instantâneos de amor, sentimento de falta, ausência do que pode ser e não é. O acaso de existir.
Registro poético quase sem intermediação, escritora e escritura unidas pelo sentido de encontro e de comunhão.
Paixão, sempre paixão em ritmo de denúncia sofrida por ela que escreve e pelos outros que apenas buscam viver. Ou sobreviver. No fundo e pela força de uma possível poética da simplicidade, permanente promessa de um mundo melhor.
Existência e revelação na palavra literariamente sentida.
Jorge Miguel Marinho